Tempo

Moura Encantada

APL 1206
Em todas as povoações da região, como de resto em quasi tôdas as da península, a imaginação popular vê a passagem dos mouros em todos os monumentos que serviram de teatro a acontecimentos longínquos, naturalmente, por terem sido os últimos invasores, e, por isso, deixarem mais viva impressão no povo. E se, como parece estar averiguado, o tempo que por cá passaram não foi só de lutas sangrentas mas de boa e amiga camaradagem, melhor se explicara a perseverança de diversas lendas
pela comunicação com o espírito romanesco dos ardentes filhos da Mauritânia. Assim a meia noite do dia de S. João, o curioso poderá ouvir em diferentes rochas da região, o tac-tac surdo de velhos teares de amoreira e o vai-vem da lançadeira através de dourados fios de sêda, impelida pelas formosas mãos de lendária moura encantada. Um dia, um lenhador, percebendo o rodopio de um sarilho, aproximou-se da alta penedia e viu uma linda compatriota de Tárique a transformar as fartas maçarocas em sedosas meadas. E pôde ver que, terminada a tarefa, a novo trabalho deu comêço: colocar sôbre a dobadoura as meadas e ennovelar os delgados fios, ao mesmo tempo que molhava os dedos lassos no límpido arroio que lhe corria aos pés. E, como não conhecia o regulamento dos encantos, ou, talvez, levado pela beleza inexcedível da donzela, foi-se aproximando, dirigindo-lhe carinhosa fala. De repente, o fio partiu-se, o fuso de ouro caiu na corrente murmurante, e, com surpresa, observou a pobre moura a fugir para a misteriosa galeria, da rocha, de tranças sôltas ao vento, a chorar, com a encantação dobrada. É que, ela havia-se esquecido de molhar os dedos na água, humedecendo-os de saliva, e, por isso, o fio partiu, e ela recolheu, apressada, para o encantamento, não sem ter tempo de levar os pentes cravejados de rútilos diamantes com que tinha alisado as louras madeixas.