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sexta-feira, 13 de abril de 2012

As gentes da Raia

A  região transmontana é muitas vezes objecto de estudo, compete a todos preservar e divulgar a memória social e cultural da " nossa gente", deixo aqui um pequeno fragmento de um projecto de estágio em Antropologia Aplicada ao Desenvolvimento, sobre a memória, identidade e desenvolvimento rural da freguesia de Quirás, da autoria de Cláudia Santos.

" A freguesia de Quirás, situa-se em pleno Parque Natural de Montesinho, em Trás-os-Montes, a norte de Portugal, concelho de Vinhais e Distrito  de Bragança. É composta por quatro aldeias, Quirás, Edroso, Vilarinho de Lomba e Cisterna, que perfazem 27,19 km². Segundo os Censos de 2001 possuía 225 habitantes, sendo a sua densidade populacional de 8,1 hab/km². Em Setembro de 2008, altura em que entro no terreno, este já não foi o número de pessoas que encontrei, tendo diminuído em cerca de 10 pontos percentuais.
...

" Quando decidi avançar para esta investigação sobre a memória, a identidade e o desenvolvimento rural, tive de assentar amarras na aldeia por seis meses.
 Durante os primeiros quatro meses, vivi quotidianamente na aldeia da Cisterna, no edifício do antigo  Posto da Guarda-Fiscal, local para o qual recaía o projecto de desenvolvimento rural, apresentado na Câmara Municipal de Vinhais.

Os restantes dois meses, e porque no antigo posto da Guarda-fiscal tiveram início as obras, fui viver para a aldeia de Vilarinho de Lomba.".
...
"Nesta freguesia de fronteira com o país vizinho, Espanha, paredes meias com o concelho de Chaves, pude encontrar uma população de contrabandistas: as gentes da raia.


Esta comunidade possui uma identidade própria, uma memória social e cultural.
A memória social e cultural constata-se pela utilização que lhe querem dar (registo das suas histórias de vida) e os locais fazem, nas suas conversas quotidianas,  inúmeras referências ao seu passado (época contrabando) comparando-o com o presente e futuro da sua aldeia.

A raia separa e limita dois países, aldeias e população.  Quirás é uma das freguesias portuguesa que se encontra neste limite, na região de Trás-os-Montes, no concelho de Vinhais, distrito de  Bragança. Encontra-se no Parque Natural do Montesinho, de altitude máxima de 1340 m (Fonte: IGP 5 ) na denominada região “Terra Fria”6. É uma freguesia de limites e de raia, porque, para além dos limites com o país vizinho, a norte da freguesia, tem a oeste fronteira com concelho de Chaves, distrito de Vila Real.


Assim, em termos demográficos, o que encontramos nestas aldeias é uma população envelhecida, que vive das suas parcas reformas (reformas sociais e reformas de trabalhadores agrícolas) e da ajuda dos seus filhos emigrados. Consequentemente, encontramos os terrenos abandonados; como declaram os locais: “e isto tudo que se vê de giestas, tudo andava centeio, andava aqui uma máquina oito ou dez dias a cortar” (Sr. Albino, História de Vida, Abril 2009); sem grandes produções agrícolas; a produção pecuária quase já não existe, são cada vez menos as pessoas que ainda fazem a matança do porco; o parque habitacional destruído e abandonado...
 As razões  apontadas pelos locais para tal  prendem-se principalmente, com o facto de, já não haver gente (como os locais amiúde referem); e  com o declínio  das actividades de contrabando que geravam os recursos financeiros usados na organização das festas. Quando interrogados sobre esta questão dizem: “não havia dia nenhum nomeado sem festa na aldeia, era todos os fins-de-semana, era assim …agora já não há gente, só restam os velhos…” (Sr. Zé, História de Vida em Abril 2009).
As festas ficaram, nos dias de hoje, restritas ao mês de Agosto, altura em que celebram as romarias ao Santo Padroeiro. Em Vilarinho de Lomba, dia 15 e 16 de Agosto, em honra de Stª Luzia e Nª Srª da Assunção, respectivamente. Na Cisterna, a 6 de Agosto em honra de S. Salvador. Nesta altura podemos ver as aldeias com mais gente, que se dividem em emigrantes de férias na aldeia de onde são naturais, e vizinhos (quer emigrantes quer residentes das aldeias mais próximas). Como pude verificar no terreno e como os próprios residentes confirmam, são cada vez em menor número e com menos frequência os que  vêm pelas épocas de Natal e da Páscoa trazendo também nestes períodos a alegria e o convívio aos habitantes de Vilarinho de Lomba e da Cisterna. Pela quadra natalícia e porque muitos emigrantes escolhem esta época para um período curto de férias, fazem a festa dos Reis. Em Vilarinho de Lomba, cantam os Reis, recolhem o fumeiro recentemente feito, e em conjunto, comem-no.

Rivalidades:

" A  minha estadia no terreno fez-me pensar nas relações de vizinhança e no conflito presente entre eles da mesma aldeia e  entre eles  e as aldeias vizinhas. O que pretendo dizer com isto é que, sendo eles vizinhos num grupo tão restrito, partilhando interesses comuns, ajudando-se mutuamente em tarefas, como por exemplo a matança do porco a realização de fumeiro, o conflito, a disputa e as rivalidades são o que mais se notam nestas duas pequenas comunidades. Frequentemente ouvia: o meu fumeiro é melhor; o meu vinho é melhor e outras expressões em que o que o vizinho faz, diz ou sabe, é sempre pouco ou nada.
Quando em confronto com outras aldeias para eles, a sua aldeia é a melhor de todas, é a mais simpática, a mais hospitaleira, a mais rica, a mais solidária. Contudo, no quotidiano isso passa de forma quase contrária ao que afirmam. Eles próprios têm consciência desta ambiguidade, como afirmou um habitante da Cisterna, num dos funerais na aldeia quando o padre manda os fiéis se cumprimentarem, diz “lá dentro beijam-se, cá fora batem-se” (Diário de Campo, Novembro 2008).
A aldeia da Cisterna é dividida por dois bairros, de um lado o mais próximo de Espanha, O Bairro Galego, do outro o Bairro Português. Cada um destes bairros tem um forno. Ou seja, existe o forno da aldeia que está no Bairro Português, mas os do Bairro Galego mandaram fazer um para eles. Então, diziam-me o Sr. Rui Fernandes, habitante do Bairro Galego, “nós podemos usar os dois fornos, ao contrário deles que só podem usar o que está no bairro deles, no bairro de cima (Galego), nós somos diferentes, somos melhores, não somos coscuvilheiros” (Diário de Campo, Novembro 2008)."

Contrabando:


"O Ti Zé é solteiro, tem 78 anos de idade, é um dos mais velhos de seis irmãos, filho de contrabandista como afirma sobre o seu progenitor “o meu pai na raia, ui Jesus, nunca tinha medo”  e “não houve guarda nenhum que o agarrasse na raia, nenhum, nenhum, nenhum…”, “era todos os dias a passar gado” (Sr. Zé, História de Vida em Abril 2009).

Desde garoto (mais ou menos 4 anos), começou a trabalhar numa casa e fê-lo durante dezassete anos. Não se lembra da primeira vez que foi ao trelo, foram tantas as vezes que o fez, que não recorda a primeira. Lembra-se que esfolou as costas de tanto carregar fardos, sempre com mais de vinte quilos, para tirar o dinheiro que não conseguia com a actividade agrícola, como diz:

“A mim chegou-me a cair a pele dos ombros, quatro noites e quatro dias  sem 
dormir nada, depois andava aqui, ao meio dia, na lavoura a lavrar, tive de mandar 
parar o condutor da máquina e tive de me sentar para dormir! Não aguentava, não 
aguentava… (…) Aqui, não havia onde o tirar (dinheiro), a tirar 50$00, não havia, 
os pais não tinham, ó pois comecei a querer andar com os rapazes… Dinheiro não 
havia, a gente fazia a colheita mal pra comer, a gente vendia uns bichinhos, não 
havia mais nada” (Sr. Zé, História de Vida em Abril 2009).


Quando nessas noites lhes apareciam os seus directos inimigos da actividade, os Guardas-fiscais ou a Guarda Civil, fugiam e escondiam o trelo e depois voltavam, mais tarde, ao sítio para tentar reaver o produto. Acontecia, por vezes, que o produto era apreendido, principalmente animais.
Certo dia em que uma égua foi apreendida e levada para o Posto, para seguidamente ir a leilão, prática corrente das autoridades policiais, entre  eles combinaram resgatar o animal e um  dos  indivíduos foi buscá-la às cortes do Posto enquanto os outros vigiavam os polícias.
Esta e muitas outras histórias  relata o Sr. Zé sobre os anos do trelo em que faziam de tudo para não perder o  género, termo usado por eles para se referirem a mercadoria.



Nesta investigação tive como base a negociação e a história de vida de cada indivíduo relativamente ao contrabando e tentei ao longo de todas elas perceber se todos estariam de acordo com a pergunta: “Podemos dizer que esta terra era uma terra de contrabandistas?” todos responderam afirmativamente, dizendo “todos fomos ao trelo, homens, mulheres, todos…” (Sr. Zé, Sr. Ramiro, Sr. Américo, Histórias de vida, 2008 )


Pela calada da noite, passaram por esta fronteira de forma ilegal, sem lugar ao pagamento de qualquer tipo de taxas, café em grão, marcas Sical, Chinês  e Farruco, peles de animais, animais, plástico em grão, lingotes, eixos de camiões, bonecos, alambiques. Os primeiros três produtos (café, peles de animais e animais) em maior número e com mais frequência.

Assim, todas as noites iam ao contrabando, e algumas delas mais do que uma vez. Se o percurso permitisse faziam-no o máximo de vezes por noite, cada ida era uma jorna. Na família iam todos os que pudessem com o fardo, maridos, mulheres e filhos.
Possuíam algumas terras, o gado, mas era ao contrabando que iam buscar o dinheiro, para as alfaias, para novos terrenos, roupas, calçado, e para fazer face a outras necessidades do quotidiano, como afirma um vizinho “na primeira vez que fui, comprei ao galego umas botas” (Sr. Abel, Março 2008).


Quanto à atitude dos guardas-fiscais, quando perguntava se alguns deles tinham sido detidos pela prática do contrabando, muitos respondiam que não, apenas tinham de levar a carga para o Posto e dali vinham para casa “a carga ficava para eles” (Ramiro, Março 2008). Todos, quer contrabandistas quer guardas-fiscais, admitem que poderia haver alguma cumplicidade entre os comerciantes e os próprios guardas-fiscais, embora o medo persistisse pela noite durante a caminhada até Espanha.

Agradecimentos: à Autora Cláudia Santos pela disponibilidade  sem reservas em colaborar com o blogue.

8 comentários:

  1. Tantas vezes ouvi contar histórias do contrabando à minha mãe que consigo imaginar as caminhadas pelas serras na calada da noite. Obrigado pela partilha do trabalho.

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  2. Eu nunca andei no contrabando, mas recordo as histórias contadas pelos mais velhos, os tempos eram duros.

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  3. Eu atravessei mta coisa, inclusive fazenda ao corpo para fazer um terno no Rióz, q era mais barato tb passei ovos para Castrellos para o comercio do Daniel.Tempos dificeis, guarda fiscal Barreira, Chena d Vilar Seco, fazia guarda em Quiráz.(TEMPOS MTO DIFICEIS)

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  4. Fui mtas vezes,a Castrellos, a Rioz as Vendas a Veiga, conheço mto bem aqueles caminhos.Tempos dificeis, q não voltem mais. Vi mtas vezes o guarda Chena o Barreira , o Chena era d Vilar Seco e trabalhava no quartel de Quiraz. Nos tirava a mercadoria e dpois ia a leilão na igreja de Quiráz, tempos dificeis.Mas q não esqueço.

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  5. Olá a todos,
    Sem dúvida que esses tempos eram dificeís, aliás eu no meu trabalho sustento a hipotese de que o contrabando se realizava por razões puramente económicas, os trabalhadores da terra para terem dinheiro para as suas despesas quotidianas e os comerciantes como fonte de enriquecimento. Relações de exploração muito bem retratadas nas histórias de vida que recolhi. Veja-se que muitos dos trabalhadores locais, referem que o dono das matérias contrabandeadas não iam ao trelo, nem os seus filhos (ficavam na cama a dormir!), eram os donos das mercearias ou da taverna. Quem arriscava a sua vida pelos caminhos escuros e silenciosos correndo riscos de um tiro dos carabineiros ou da guarda fiscal, eram os os "contrabandistas". Coloco aspas porque seria necessário esclarecer quem de facto era o contrabandista, se o dono ou quem transportava. Tenho um filme onde os homens e mulheres que percorriam estes quilometros à noite, contam as suas vivencias, medos e artimanhas. Um abraço a todos com saudades... Claudia Santos

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    1. Obrigado Drª Cláudia, pelo trabalho, pela colaboração e acima de tudo por fazer recordar uma época de grande importância para a região. Os comentários recebidos são fruto do seu trabalho. Bem-haja.

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  6. Tantas vezes que fui vender ovos a Castrelos, para poder trazer outras coisas. Íamos muito longe tudo a pé e carregados. Tudo se vendia até burros velhos para os espanhóis matarem .

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  7. Além d ovos, passavamos mtos rebanhos de carneiros e ovelhas, q eram separados nos lameiros de valcabrita e dali iam param castrelos e ali por diante...................................

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